“Alimentar-se é um ato nutricional, mas comer é social”, lembra a historiadora Marcella Lopes Guimarães

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“Alimentar-se é um ato nutricional, mas comer é social”, lembra a historiadora Marcella Lopes Guimarães

Citando o Prof. Dr. Carlos Antunes dos Santos, a especialista discorre sobre diferentes aspectos da alimentação que, ao longo dos anos, foram se transformando e mobilizando a humanidade

Em entrevista ao Alimentação em Foco, a doutora em História pela Universidade Federal do Paraná, Marcella Lopes Guimarães, faz um passeio pela História da Alimentação, analisando a contribuição da busca pelo alimento no desenvolvimento das sociedades e dos seus hábitos.

Mais do que a busca por nutrientes, o ato de comer ganha, ao longo do tempo, uma função social que transcende o corpo físico. Da corpulência à magreza, da função dos enlatados em tempos de guerra ao prazer dos franceses na cozinha com seus alimentos frescos, do homem que caça ao sedentário: um bate-papo que traz deliciosas reflexões! Acompanhe:

 

Alimentação em Foco: A busca pela comida é a grande impulsionadora do desenvolvimento e das grandes conquistas da humanidade?

Marcella Lopes Guimarães: De certa forma sim. Várias sociedades guiaram a sua expansão e a sua mobilidade pela necessidade urgente de abastecimento. É por isso que o alimento é uma categoria histórica. Como afirmou um grande especialista da área no Brasil, o Prof. Dr. Carlos Antunes dos Santos, alimentar-se é um ato nutricional, mas comer é social.

Porém, é preciso lembrar que em História as causas nunca são unívocas, há sempre uma pluralidade de razões para as transformações que impactam as sociedades.

 

Alimentação em Foco: Comer sempre esteve associado ao prazer ou em algum momento da história a alimentação teve um papel simplesmente de nutrir?

Marcella Lopes Guimarães: Se entendermos o ato de comer como um ato social, para ele converge uma série de significados. Você falou em prazer, o júbilo está decerto presente! Mas eu gostaria de acrescentar outro significado: o de reunião, o de promover a sociabilidade. Entre os gregos antigos, os banquetes eram uma espécie de memória de um tempo em que a humanidade sentava-se à mesa com os deuses; era um sinal de civilização, com funções políticas também. Entre os romanos antigos, havia pelo menos dois tipos de refeições: a cena e o prandium.

A cena ou convivium era uma celebração! E o prandium? Era a refeição caseira, cujo objetivo era tão somente alimentar-se. Nesses dois casos que mencionei, fica clara a relação entre nutrir-se e conviver, participar da vida pública. Todavia há mais. Quando pensamos nos egípcios antigos, devemos nos lembrar que era a obrigação dos vivos continuar a alimentar o ka dos mortos, ou seja sua energia vital, que se mantinha para além da corrupção do corpo físico.

Era por isso que nos festivais, as pessoas levavam comida para seus mortos e faziam, por sua vez, espécies de piqueniques junto às tumbas. Um dos pontos altos do Cristianismo é o “tomai e comei”/ “tomai e bebei”. Onde estava Cristo antes de iniciar o ato mais espetacular de sua missão? À mesa! Deu-se mesmo em alimento sagrado: “Tomai e comei; isto é o meu corpo.” (Mt, 26:26). Portanto, comer é um ato cheio de sentidos para diversas sociedades e a relação destas com o que, a princípio, era “apenas” nutrir-se, é muito revelador das suas formas de viver e de se guiar.

 

Alimentação em Foco: Houve um período em que o peso significava status. Quando foi e como era essa relação? E quando passamos a ficar obcecados pela magreza?

Marcella Lopes Guimarães: Essa questão é muito interessante, pois em diversas sociedades e temporalidades a corpulência e o desejo de moderação conviveram. Não dá para afirmar que houve uma “evolução”. A crença em “evoluções” pode ser bastante equivocada, sobretudo levando-se em conta que a obsessão a que você se refere pode levar a muito sofrimento, caso dos transtornos alimentares que tanto fazem sofrer adolescentes e adultos, suas famílias e é um desafio para os médicos, nutricionistas e psicólogos. Na Idade Média, a opulência, a mesa farta, também foi “cobrada” pela lista dos pecados capitais.

E a gula continua na lista. Nas sociedades do Ocidente latino, no período que conhecemos como Idade Média, a caça era um esporte da nobreza, sua prerrogativa. Assim, os nobres também consolidavam seu poder à mesa, resultado do fato de que só eles dispunham e podiam explorar grandes extensões de terra para esse fim. Mas nos mosteiros, a situação era diferente, a carne não visitava muito os pratos.

Veja que relevante para a História da Alimentação: a diferença alimentar confirmava uma diferença social. Para abordar essa magreza a que se referiu, vou trazer para cá a contribuição do historiador Paolo Rossi, no livro Comer: necessidade, desejo, obsessão (São Paulo: Ed. da UNESP, 2014): “Num mundo que considera a beleza e o porte físico como valores preeminentes, que propõe e faz propaganda disso com forte insistência, e até mesmo com agressividade, que eliminou dos meios de comunicação de massa toda e qualquer forma de pudor, determinados tipos de beleza e de físico assumem um valor quase exclusivo” (pág. 154).

Queria reter alguns elementos dessa declaração: meios de comunicação de massa e padrão exclusivo. O poder do primeiro elemento é a evidência do quão recente é o fenômeno que abordamos. Rossi dá um exemplo chocante, na página seguinte ao trecho que copiei aqui: “As mulheres das Ilhas Fiji (que formam um arquipélago da Oceania a sudoeste do Pacífico, com a maioria de sua população de origem melanésia) eram avantajadas.

Cerca de três anos após a chegada da televisão, em 1995, muitos jovens passaram a adotar e difundir uma dieta, antes inexistente, que incluía vômito induzido, envolvendo 11% deles” (pág. 155). Estamos falando então de um poder real, que dita uma exclusividade, que restringe a diversidade ao paroxismo. Isso precisa ser encarado pela sociedade contemporânea de maneira interdisciplinar.

 

Alimentação em Foco: E o sedentarismo entrou em que momento na vida da humanidade?

Marcella Lopes Guimarães: Novamente precisamos matizar uma ideia de sucessão de comportamentos, pois mesmo na contemporaneidade, ao lado do evidente sedentarismo diante das telas de computador por horas a fio, há cada vez mais apelos para uma vida saudável, que inclui alimentos orgânicos, prática esportiva e exercícios físicos na nossa rotina diária.

O lançamento menos espaçado no tempo de novidades tecnológicas pode ter colaborado para o deslocamento de nossa energia para certas atividades: as máquinas de lavar roupas nos tiraram dos tanques, dos rios e córregos; as lava-louças, das pias…, mas quem disse que o corpo curvado por horas sobre rios, esfregando e torcendo, era uma postura saudável?

Elevadores facilitam a mobilidade em edifícios e, quanto mais altos, mais necessários e úteis, os joelhos agradecem! Mas… há um outro lado nisso. Cito um exemplo: trabalho em um edifício de 11 andares e o meu andar é o 6º. Raramente uso elevador, prefiro a rampa. Mas já vi pessoas pegarem o elevador para irem do térreo ao 1º andar; do 2º ao 4º… Essas pessoas podem estar com algum problema físico. Porém, todas?…

 

Alimentação em Foco: Há correntes que tentam resgatar desde sementes que se perderam com o tempo, passando por práticas agrícolas, receitas, hábitos alimentares, enfim, estilos de vida mais “antigos” que em algum momento foram abandonados e agora são considerados mais saudáveis do ponto de vista alimentar. Esses movimentos de “vai e volta” são comuns na história? O que faz com que eles aconteçam?

Marcella Lopes Guimarães: De fato esses fenômenos parecem “movimentos de ‘vai e volta’”, mas prefiro entendê-los como forças concorrentes no mesmo contexto. Recomendo a autobiografia de Julia, Minha vida na França, escrita em parceria com Alex Prud’homme[1] (São Paulo Seoman, 2009).

Há um fragmento desta obra em especial em que as contradições a que me refiro no mesmo contexto se sobressaem: “A história que Hélène contou sobre a época da guerra me fez pensar sobre os franceses e sua fome profunda, algo que parecia estar se escondendo por trás de seu amor pela culinária como arte e pelo ato de cozinhar como ‘esporte’. Perguntei-me se aquela mania de gastronomia dos franceses não teria raízes, em vez da luz solar da arte, nas profundas trevas das privações que a França tinha sofrido ao longo dos séculos” (pág. 80).

Sem manifestar apurado conhecimento histórico, Julia, entretanto, observa um fenômeno relevante para o estudo da História: as resistências. A percepção de forças e ideias em conflito– digladiando-se, buscando harmonia, consenso, revelando o dissenso – anima o estudo da História, revelando a força e a resistência de homens e mulheres.

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